Les temps sont durs pour les rêveurs. Quand le doigt montre le ciel, l' imbécile regarde le doigt.
good night.
There are two kinds of people in the world, my friend. Those who have a rope around their neck and those who have the job of doing the cutting.
a vida depois da vida. o momento em que os órgãos vitais decidem que não querem mais continuar o seu trabalho e o corpo passa a ser dono de ninguém. o coração pára porque se farta. suicida-se e mata consigo todas as células pelas quais era responsável. aquilo que um dia foi vida, olhares, abraços e sexo, passa a ser a merda que as moscas comem. pode ser que o melhor seja fingir, a mentira sempre foi o meio mais interessante de se contar uma história. se fingirmos de tal modo que acreditamos na mentira que inventámos talvez consigamos viver sem morrer, e a morte passa então a ser uma fase da vida.
sabes, fiz-te um mealheiro com um copo de cartão do starbucks que tinha o meu nome a caneta, afinal de conta, sem ainda existires, sentia-te já parte de mim. o meu estudo intensivo e sem fim acerca de cuidados a ter contigo e uma enorme expectativa do que seria trazer-te para casa sem ninguém saber, esse mistério curioso do que seria o simples facto de ter um gato. senti-me em parte uma criança, e só isso fez-me feliz. visitei-te quando te encontrei, sem saber bem ainda quem eras tu, e senti-me sem mais palavras feliz. todo pretinho, de pelo feio e com olhos azuis. esperei as semanas necessárias para te trazer com a maior ansiedade possível. e quando vieste, dentro de um saco de papel, estavas muito assustado sem saber o que se passava e para onde te levavam. desculpa. simplesmente não resisti. cabias na minha mão, e querias muito dormir. ofereci-te uma manta que ainda hoje tem o teu cheiro, e sei que nunca a lavarei. gostaste dela o suficiente para a chamares de cama, e aí ofereci-te uma caixinha de cartão onde passaste a dormir com a tua manta. a caixa dizia Alfredo, e Alfredo Hitchcock te chamaste. sinto muito as brincadeiras que tínhamos nesse tempo, como as bolinhas de plástico que atirava e tu corrias para as buscar e trazer de volta. eras matreiro, e só gostavas do melhor. eras dono da razão, um nariz empinado. pois eu, eu gostava de ti assim. levei-te comigo de viagem, e tu nada gostavas de viajar. eu simplesmente queria-te comigo. sempre. e pensei seriamente que nunca nos iríamos separar. o tempo ia passando, e conhecia-te melhor do que ninguém. não eras de todo esquisito, mas a comida só da melhor. contentavas-te com um dia ao sol no quintal, e uma noite quentinha ao lado da tua família. lembras-te quando subiste a chaminé pela primeira vez? fiquei muito assustada por ti e fiz de tudo para vires logo embora, sem sequer perceber que aquele era o teu cantinho. o teu sítio onde mais ninguém podia chegar. era só teu. outras vezes foi arrepiante ver-te. quando te estrangulaste com a trela. quando te vi enforcado não tive reacção. e posso usar a foleira expressão 'o meu coração parou' porque foi realmente isso que senti. quando te salvei tu agradeceste e ficaste muito tempo abraçado a mim. foi bom sentir que estavas protegido e a salvo das coisas más. gostavas muito de passeios. acredita, se não tinhas mais liberdade foi com medo que acontecesse o que aconteceu. mas sempre tentei dar-te o melhor e fazer-te feliz. lembras-te quando te punha na mala de cabeça de fora e íamos passear? e quando te pus no cesto da frente da bicicleta? punhas o nariz de fora a medo e cheiravas tudo! mas um dia saíste para dar uma volta à frente de casa, como matreiramente fazias, e não regressaste a meio da noite como de costume. de manha esperei por ti no quintal, a dormir em cima do baloiço, mas não estavas. a partir desse dia procurei por ti incessantemente. e posso dizer que todas as ruas deste quarteirão ouviram o teu nome. procurei-te nos sítios mais estranhos, mais que uma vez. não sabia se tinhas querido ir à tu vida ou se estavas simplesmente perdido. na altura não interessava, eu tinha de te encontrar. assim foi durante dez dias. todas as noites fazia a minha jornada onde te procurava e chamava sem fim. até que me compreendi que só chamar por ti não chegava, e resolvi ir mais longe. coloquei centenas de papeis com a tua melhor fotografia espalhados pelas ruas. e foi assim que descobri o que é sentir a perda de alguém. a falta da presença daquilo que amamos. é inexplicável o sentimento de chegar a casa e sentir o silêncio, o grande vazio entre as paredes. não vires ter comigo quando chego a casa, para conforme o teu humor roçares-te ou ralhares por ter demorado tanto a chegar. era bom falar contigo, chamar-te e tu responderes. ter a tua companhia e sentir a tua presença onde quer que eu estivesse. a cama é tão grande agora sem ti aos meus pés, aninhado no edredon. queria tanto apertar-te e por-te debaixo do meu queixo como sempre faço. fazes-me falta. demasiada falta.
«Talvez tivesse medo de estragar a lembrança desses longínquos dias, medo de mover, para melhor expor as coisas, essa fina camada de pó onde repousa, apenas adormecida, a memória dos dias felizes.»
miguel sousa tavares